As tramas que revelam a história ainda viva na Americana de hoje
Autor do livro ‘Carioba – as tramas do algodão’ conta para leitores de Recantos da Terra como foi a construção da obra
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Carioba – as tramas do algodão”, do escritor americanense Gilberto Hackman, é um livro histórico. Mas a Americana de hoje está completamente presente no perfil, na dinâmica e na vida dos personagens narrados no livro. O romance, escrito com uma narrativa ágil e madura que prende a atenção do leitor já nos primeiros momentos, se passa na antiga Carioba, fazenda que está na essência da Americana que se constituiu nos anos seguintes. Na entrevista abaixo, Gilberto revela para os leitores de Recantos da Terra o processo de construção do livro, a dinâmica e o perfil de seus personagens e o grande número de fontes históricas de consulta que utilizou. 


Recantos da Terra Gilberto, o livro faz uma descrição detalhada, às vezes em minúcias, do espaço da Carioba, dos seus tempos de atividade. Como foi feita a pesquisa para sedimentar a tua descrição?

Gilberto Hackman – Não conheci a vila de Carioba. Eu me recordo que uma vez meu pai nos levou para passear e fomos até Carioba. Foi quando o túnel de bambus se fixou na memória e as pequenas casas geminadas com a cerca de madeira protegendo me chamaram a atenção. Não descemos do Fusca, mas a lembrança ­– eu devia ter uns 9, 10 anos, ficou até hoje. Adulto, visitei o Casarão Hermann Muller algumas vezes e pude respirar naqueles pisos e paredes e alguns móveis restantes o deslumbramento da época. Me lembro que, absorto naquele jardim em frente ao casarão, ao cair da tarde, com as águas do Piracicaba descendo em calmaria, pude sentir na brisa que vinha do rio que havia um sentimento pesado de histórias pedindo para serem contadas sobre o lugar. Quando me pus a escrever o livro, minhas referências foram os livros que cariobenses apaixonados publicaram, como a obra de Antônio Bertália, “Recordações de Carioba”; da Divina Bertália “Carioba sob o olhar feminino”; do Hercule Giordano “Minhas Memórias”; da Suzete Stock “Carioba, um lugar, uma herança”. Também me auxiliaram as pesquisas publicadas nos livros “Uma história entre rios”, do Grupo Historiadores Independentes de Carioba e “Identidade e Memória – A trajetória dos negros em Americana” da Cláudia Monteiro da Rocha Ramos. As fotos, referências e descrições dos ambientes e da arquitetura foram o material para eu imaginar os locais e os encontros dos personagens no livro. Por isso, geralmente, em minhas dedicatórias a quem me honra em adquirir o meu livro, eu costumo escrever “Viaje por Carioba em suas tramas do algodão”. A ideia era levar o leitor a viajar pelos locais de Carioba ao mesmo tempo em que a trama se desenrola na história que eu conto.


Lendas descritas por você no livro, como a do maravilhoso cavalo negro Corrente de Vento, existiram na antiga Carioba?

Muitos amigos cariobenses sempre me contam histórias incríveis do local. As artes, travessuras, boatos e lendas. Sempre imaginei Carioba como um local místico também. Talvez a nostalgia e saudosismo que persiste até hoje nos cariobenses seja decorrente de tanta vida vivida lá, de ludicidade no dia a dia, de uma existência em que era muito fácil inventar, sonhar e criar histórias próprias. Diante disso, entendi que precisava criar esse ambiente místico na minha narrativa. Criei minha própria lenda, que é a do cavalo Corrente de Vento. E a lenda do cavalo negro se mistura com os acontecimentos, confere realismo ao imaginário popular e torço para que a história ficcional se misture com a real e dê ao leitor asas para cavalgar no Corrente de Vento e decidir o que foi real ou inventado na história.


Essas pesquisas certamente nortearam também a construção de seus personagens. Como foi esta parte do trabalho de pesquisa?

A forma como a família Muller deixou Carioba e passou a administração da fábrica de tecidos a um gerente para gerir os negócios durante o período da 2ª Guerra é descrita em alguns livros como tendo algumas lacunas não esclarecidas oficialmente. Houve as razões das restrições do governo de Getúlio Vargas às empresas alemãs no Brasil por conta da proximidade da guerra e da política de nacionalização que Vargas implantava. Esse fato trouxe muitas dificuldades para a administração dos negócios da fábrica. Havia também a questão do nazismo que encantava os alemães e do fascismo que apaixonava os italianos. Porém, além destes acontecimentos históricos, sempre houve especulações de que algo mais sutil e não revelado tenha acontecido para que os proprietários deixassem Carioba. Na pretensão de que ao escritor cabe preencher as lacunas da história com sua imaginação e especulação, pensei em uma história em que o gerente tivesse que romper seu noivado para assumir os negócios, casando-se com alguém indicado pelo proprietário da fábrica. Uma história de ambição que suplanta a honra e o amor. Assim, surgiu o casal romântico do livro: Domênico e Loretta. Nos estudos sobre como encontrar a melhor forma de narrar a história, após testes e tentativas, tive um insight. Eu ficava ouvindo muitos depoimentos no Youtube de cariobenses contando suas lembranças, sua vida de trabalho, os costumes e amigos da época. Daí me ocorreu que ficaria adequado eu criar narradores testemunhas da história. E passei a trabalhar em narrar com esse recurso narrativo. Como o narrador testemunha narra apenas o que ele viu, ouviu ou viveu, não tem onisciência sobre a história, criei quatro narradores com a intenção de cobrir todos os lados de Carioba: Beppe, que vive pela vila, exerce liderança sobre o local e pode contar o que ele via acontecendo nas ruas de Carioba. Ele cuida da cancela na entrada de Carioba, administra a Sociedade Mútuo Socorro, é dirigente do Clube Carioba e está sempre presente nas atividades culturais e esportivas. Fortunata, professora da escola, religiosa (freira), mulher preta e muito estudada e progressista. Carioba em sua primeira fase viveu em uma época em que o fascismo, nazismo e o comunismo disputavam os espaços políticos. A intenção com a personagem foi trazer essas discussões ao texto e ainda, a questão racial que muito intriga: se a Fazenda Salto Grande, ao lado de Carioba, possuía muitos escravizados e muitos deles construíram as primeiras casas da vila, com a vinda dos imigrantes italianos no começo do século passado a Carioba, aonde os antigos negros escravizados passaram a morar, trabalhar ou viver? Uma vez que naqueles primeiros anos poucos negros permaneceram em Carioba. A personagem traz essa questão à história. E, por fim, Carmela e Diogo, personagens que criei para contar o dia a dia da família que morava no casarão. Carmela é a governanta da casa e Diogo trabalha como contramestre na tecelagem.


Ao analisarmos esses personagens do livro e a complexidade de temas e relações vividas por eles e elas, vemos que essas relações ainda estão vivas na sociedade atual de Americana. Você avalia que aquilo que foi vivido nos tempos de Carioba, as pessoas e relações, deixaram marcas que ainda estão vivas em Americana hoje?

Tenho aprendido que o escritor precisa se conectar com o seu tempo. Mesmo um romance histórico precisa ser contado de forma a também falar sobre a época da atualidade do leitor. A primeira fase de Carioba – até o fim dos anos 1930, foi marcada pela ascensão da moralidade burguesa, pela luta sindical, luta política que redundou na guerra. Elementos que hoje voltam ao cenário atual e tanta polarização tem trazido. Ao mesmo tempo, essa volta desses elementos, para mim, apenas revelam a sociedade conservadora e patrimonialista que se engendrou no Brasil e em Americana, enquanto sociedade que se formou a partir da industrialização têxtil, nas relações patrões-empregados. Os personagens do livro foram criados para viver essas relações de poder e suas camadas e complexidades desenvolvi com a intenção de retratar aquela época, mas também com a intenção de ajudar a desvendar a Americana de hoje e seu desenvolvimento cultural e social ao longo das últimas décadas. Agradeço a oportunidade da entrevista. 

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SERVIÇO

O livro “Carioba – As Tramas do Algodão” pode ser adquirido na Papelaria Tamoio, inclusive por seu site. A obra também está disponível na Amazon em versão física e e-book.

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